Em visita recente ao estado do Amazonas, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva defendeu a retomada das obras da BR-319, que liga Manaus (AM) a Porto Velho (RO), ressaltando que o empreendimento não deve gerar impactos ambientais. “Não vamos permitir o desmatamento e a grilagem de terra próximo à rodovia, como é habitual acontecer neste país”, disse Lula, na Aldeia Kainã, do povo Munduruku, em Manaquiri (AM), um dos municípios no trecho da estrada.
Na avaliação de ambientalistas, a devastação decorrente da pavimentação da BR é inevitável e já pode ser percebida por comunidades do entorno. “Está acontecendo a grilagem de terras e a caça predatória, a retirada da madeira também já está sendo feita”, conta um morador de uma Terra Indígena (TI) impactada pela obra. Ele pede para ter a identidade preservada, pois teme represálias por parte de grupos criminosos que dominam a região.
Como a rodovia facilita o acesso a terras públicas, essas localidades viram alvo de grileiros – criminosos que invadem essas áreas e falsificam documentos para lucrar com a venda dos lotes.
“Também prejudica as nascentes dos igarapés. As nascentes estão todas soterradas”, denuncia o morador de outra TI, que também prefere não se identificar.
São 57 igarapés soterrados na área afetada pela rodovia, de acordo com levantamento apresentado pelo biólogo Lucas Ferrante, pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). “Nós já temos um impacto muito grande sobre o modo de vida desses povos”, avalia.
A longo prazo, a devastação local pode gerar ondas de calor em Manaus, redução do volume de água nos rios da Amazônia e mudanças no regime das chuvas no país.
“Nós vamos acabar com 70% das chuvas que abastecem o Sul e o Sudeste do Brasil”, alerta Ferrante. Há dez anos, ele se dedica a avaliar os danos ambientais causados pela rodovia. “Colapsando o sistema Cantareira [que abastece São Paulo], ou seja, nós vamos impactar o suprimento de água para consumo humano, agricultura, indústria”, explica.
As obras da BR não ficam restritas ao corpo da rodovia, mas se expandem para o entorno, com a abertura dos ramais – estradas menores que conectam cidades e propriedades rurais à via principal.
Com isso, o desmatamento avança por uma das zonas mais protegidas da Floresta Amazônica, interferindo no sistema de evapotranspiração, responsável pela formação dos rios voadores – grandes volumes de vapor de água transportados pelas correntes de ar. Uma das consequências é a baixa umidade em Manaus. “Aí nós vamos ter ondas letais de calor para Manaus e para a Amazônia Central”, projeta Ferrante.
Avanço do desmatamento
O desmatamento na região da rodovia aumentou em 122% entre os anos de 2020 e 2022, segundo levantamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). O problema se intensificou a partir do anúncio da retomada do asfaltamento da BR, em 2020, pelo governo de Jair Bolsonaro.
Agora, com um novo incentivo ao empreendimento, a devastação pode aumentar ainda mais. “O asfaltamento da rodovia produzirá avanço e potencialização do desmatamento, ameaça à biodiversidade e potencialização de grilagem de terras públicas”, aponta o texto de uma Ação Civil Pública (ACP) protocolada em janeiro de 2024 pela organização não governamental Observatório do Clima, em face do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama). A ação resultou na suspensão da licença prévia emitida pelo órgão em julho de 2022, que permitia a reconstrução e o asfaltamento da rodovia.
No documento, o Observatório do Clima destaca que a licença desconsiderava dados técnicos, análises científicas e diversos pareceres elaborados pelo próprio Ibama por anos, ao longo do processo de licenciamento ambiental.
BR corta Amazônia
Com 885 quilômetros, a BR-319 liga Manaus a Porto Velho, passando por 13 municípios, 28 unidades de conservação e 69 comunidades indígenas, sendo uma delas de povos isolados. A proposta é interligar os estados de Amazonas e Rondônia, melhorando o transporte e a locomoção nessas regiões e a conexão com outras localidades. De acordo com informações do Ministério dos Transportes, o Departamento Nacional de Infraestrutura e Transportes (Dnit) licitou a pavimentação de mais 20 quilômetros, na área denominadas Lote C. O serviço já está em processo de execução.
Atualmente, a rodovia conta com 476 quilômetros asfaltados, em trechos não contínuos. Mesmo com a pavimentação parcial, as comunidades da área já percebem os impactos do empreendimento.
No dia 25 de agosto, o Ministério Público Federal (MPF) emitiu um ofício à Prefeitura de Tapauá recomendando a suspensão da abertura de ramais perto de terras indígenas. Em nota ao Brasil de Fato, o MPF informou que os dados constantes no procedimento indicam que, possivelmente, o ramal tem como objetivo ligar a cidade à BR-319.
O documento menciona um inquérito civil aberto para “apurar prejuízos ao povo indígena Apurinã das terras indígenas Igarapé São João e Tawamirim em razão da construção de uma estrada que passa por estas terras, bem como ameaças a estes indígenas por parte da prefeitura de Tapauá”.
“Não tem outro jeito, dizem que quem manda é a classe dominante, né? E a gente, como é a classe dominada, vai se acostumando”, lamenta um dos indígenas, que teme ter seu nome revelado. Ele já foi alvo de ameaças de morte por denunciar os crimes ambientais que testemunha na região.
A rodovia e a seca no Amazonas
A Amazônia enfrenta uma estiagem histórica, com rios secos e comunidades isoladas. Mesmo nesse cenário, a BR-319 não é a solução, na avaliação de Lucas Ferrante. “Os municípios mais afetados pela seca estão distantes da rodovia e não são conectados pela rodovia”, afirma o pesquisador.
Embora o nível do rio Madeira, que corre paralelamente à BR-319, esteja baixo, as regiões mais afetadas pela seca ficam nas bacias dos rios Negro e Solimões. “Nós precisamos lembrar que o Amazonas tem uma geografia única. O que se aplica aos outros estados não se aplica à região Amazônica”, afirma o pesquisador. Para ele, os rios da Amazônia funcionam como boas vias de transporte para a região.
Esse sistema de transporte, no entanto, também é afetado pela obra da BR-319. Com o aterramento de igarapés, uma das consequências do empreendimento, o fluxo das águas em rios usados para transporte, como o Madeira, é prejudicado. O impacto do desmatamento no ciclo das chuvas agrava ainda mais o problema.
Na avaliação de Paulo Busse, advogado do Observatório do Clima, o atual projeto da BR-319 não atende às exigências para garantir os cuidados com o meio ambiente e os povos da floresta.
“Talvez um novo projeto que contemple todos esses cuidados possa justificar esse empreendimento”, pondera. Busse lembra que o projeto inicial da BR-319 foi desenvolvido nos anos 60 e precisaria de uma nova versão, com avaliação de impactos ambientais atualizada. “Sem ver o novo projeto, absolutamente não dá para saber se seria possível abrir uma estrada como essa sem impactar o ambiente e as populações tradicionais.”
A reportagem questionou o Governo Federal sobre a declaração do presidente Lula, os impactos ambientais relacionados à obra e a possibilidade de um novo projeto. Até o fechamento desta reportagem, não recebemos retorno. Em caso de resposta, o texto será atualizado.
Edição: Rodrigo Chagas