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‘Mulheres que têm direito ao aborto vão à ilegalidade por medo de outras violências’, diz fundadora do Projeto Vivas

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“Mesmo quando previsto em lei, o acesso ao aborto no Brasil passa por obstáculos sociais, burocráticos e, em diversos momentos, violentos”, pontua Rebeca Mendes, ativista e fundadora do Projeto Vivas – uma organização não governamental que ajuda, de forma multidisciplinar, a encurtar o caminho aos serviços de aborto legal no Brasil ou no exterior.

Este sábado, 28 de setembro, é o Dia Latino-Americano e Caribenho de Luta pela Descriminalização do Aborto. A 7 dias do primeiro turno das eleições municipais, Mendes destaca, em entrevista ao Brasil de Fato, a responsabilidade dos municípios na garantia do serviço de saúde. “O papel do município, do Estado em geral, é garantir que as políticas adotadas pelo Ministério da Saúde sejam cumpridas. Cabe às prefeituras, também, implementar políticas que facilitam o acesso ao aborto legal. E a gente precisa estar atenta nessas eleições ao histórico dos candidatos nesse sentido”, diz.

“Há candidaturas da extrema direita, como a tentativa de reeleição do Ricardo Nunes, por exemplo, que fechou um serviço de aborto legal em São Paulo. Até onde a gente sabe isso aconteceu por questões ideológicas, de um bolsonarismo que vem atuando em todo o país”, cita a ativista.

O serviço ao qual Mendes se refere é o Hospital Vila Nova Cachoeirinha, cuja oferta para o procedimento de aborto legal foi interrompida em dezembro de 2023. O hospital era referência no país e o único em São Paulo a realizar o procedimento em gestações acima de 22 semanas, uma necessidade frequente das vítimas de violência sexual que engravidam, especialmente crianças. O caso foi levado, em julho deste ano, à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), vinculada à OEA (Organização dos Estados Americanos).

Ainda segundo a ativista, a suspensão do serviço pelo hospital em São Paulo foi um dos maiores obstáculos que a ONG enfrentou em sua história recente. “A prefeitura alega que foi um fechamento estratégico, mas faltou um detalhe: avisar às mulheres que estavam em acompanhamento”, conta. “A gente teve que fazer o processo de redirecionar essas mulheres para outros hospitais, porque a prefeitura não fez nada. E no Cachoeirinha, vale dizer, nós conhecíamos a equipe, confiávamos no procedimento. Há outros hospitais em São Paulo onde não há equipe ou há desculpas diversas para não fazer o aborto”, reforça.

À época da suspensão do serviço do Vila Nova Cachoeirinha, a Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo informou, em nota, que “atende todas as demandas de procedimentos com determinação legal em observância à legislação”.

“Nesse contexto, a gente vê muitas mulheres que têm direito ao aborto legal e preferem ir para a insegurança da ilegalidade por medo de sofrer outros tipos de violência. Violências institucionais, violências obstétricas”, diz. “O maior entrave que temos no nosso país, sem dúvida, é a criminalização em si. Quando você coloca um cuidado de saúde num código penal, você afasta até mesmo aquelas que têm direito.”

Projeto Vivas

No Brasil, o Vivas conduz casos previstos em lei aos hospitais habilitados para realizar o procedimento, o que nem sempre é um processo simples. “As mulheres entram em contato conosco pelo WhatsApp e aí, no momento do acolhimento, nós vemos se o relato que ela nos conta cabe em um dos três permissivos legais [no Brasil], ou se é uma situação em que a gente encaminha para outro país”, diz. “Quando a gente detecta que é o caso, por exemplo, de violência sexual, nós fazemos todo o acolhimento e encaminhamos ela para o serviço mais próximo a ela ou ao serviço mais próximo com o suporte necessário para acolhê-la, dependendo das necessidades naquele momento.”

Há ainda casos em que a interrupção da gravidez é proibida no Brasil, mas possível de maneira legal e segura em outros países da América do Sul. “Nesse caso, nós auxiliamos a viagem dessa pessoa ao país, como Argentina ou Bolívia, onde a legislação oferece mais suporte do que a nossa”, explica Mendes, que também trabalha como advogada.


Rebeca Mendes lutou no STF por aborto legal / Reprodução/Instagram

 Luta pelo aborto legal

A ideia de criar um projeto que oferece auxílio e informação às pessoas que precisam abortar surgiu da experiência pessoal de Rebeca Mendes. Em 2017, ela virou símbolo de luta pela descriminalização do aborto quando conduziu sua necessidade de um procedimento seguro e legal no Brasil ao Supremo Tribunal Federal (STF).

A liminar, elaborada em parceria com o Partido Socialismo e Liberdade (Psol) e Instituto Anis bioética, argumentavam pela dignidade, liberdade e saúde de Mendes. Ainda assim, foi negada pelo STF. A então estudante de direito então, auxiliada por outras entidades, realizou o procedimento de forma legal na Colômbia – a maneira como foi procurada por outras mulheres que desejam o mesmo levou, mais tarde, à criação do Projeto Vivas.

“Em 2017 eu estava no meio da faculdade de Direito, mãe de dois filhos de 6 e 9 anos, e acabei engravidando”, conta. “Eu usava um contraceptivo que me deixava muito mal e decido, naquele momento, que vou fazer a troca da injeção que eu tomava para o DIU. Busquei o SUS e encontrei um processo super burocrático”, relembra. Segundo Mendes, a simples escolha pelo método não bastava para a equipe de saúde. Foi necessário um longo acompanhamento que, entre idas e vindas, durou quase um ano. “O procedimento [de inserção do DIU] ia acontecer em dezembro. Em novembro, descobri que estava grávida”, diz.

“Desde o primeiro momento eu sabia que eu não queria. Mas o problema maior, após a minha decisão, era fazer isso com segurança”, relembra. Mendes pontua que, especialmente por ser mãe de duas crianças, não estava disposta a correr riscos em procedimento inseguro. Na busca por suporte entre ativistas, Mendes conheceu a professora Debora Diniz, antropóloga, pesquisadora e defensora da pauta de descriminalização do aborto no Brasil. “E aí ela me fala que o caminho que eu poderia seguir, que fosse o da legalidade, seria se eu entrasse com um pedido de total de urgência dentro da ADPF [Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental] 442, solicitando um aborto legal mesmo não estando dentro dos permissivos já existentes”, recorda. Alguns dias depois, o pedido foi negado pela ministra Rosa Weber.

“Mas a atenção que o caso ganhou fez com que algumas organizações da América Latina me convidassem a conhecer o trabalho delas. Foi quando fui a Bogotá, na Colômbia, conversar com organizações. E lá eu descobri que apesar de ser um país tão religioso quanto o nosso, o meu caso, em que a gestação oferecia risco à minha vida, era legalizado”. No dia seguinte Rebeca foi fazer o procedimento. “Foi algo tão simples, tão rápido, durou 15 minutos”, recorda. “E então isso ficou muito na minha cabeça e gerou uma indignação enorme: como a minha vida virou um inferno em busca de um cuidado de saúde tão simples”.

Edição: Thalita Pires