Dezoito anos após a aprovação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS) em 10 de novembro de 2006 e de seu lançamento no 2º Seminário Nacional de Saúde da População Negra, e, ainda, 15 anos após a sua promulgação por meio da Portaria GM/MS n. 992, de 13 de maio de 2009 – contendo o plano operativo que define protocolos e metas para a sua implementação –, o Brasil ainda precisa avançar muito para garantir a equidade em saúde.
É na década de 1980 que a luta antirracista se intensifica e ganha visibilidade, por meio da proposição de uma agenda política apresentada pelos movimentos negros, a qual almejava assegurar os direitos fundamentais à população negra, incluindo-se o acesso aos serviços de saúde. Porém, a saúde da população negra só ganha contornos mais visíveis, quando o movimento de mulheres negras, que lutava não apenas por espaços de discussão na arena pública e representação política em lugares estratégicos, denuncia a existência de práticas racistas nas políticas de controle natalista, que promoviam esterilização forçada em mulheres negras. Este movimento reivindicava, portanto, a regularização da esterilização no país e a regulamentação do planejamento familiar, além de exigir a implementação adequada da Política de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PAISM) (Oliveira, Magalhães, 2022).
A articulação dos movimentos negros e de mulheres negras possibilitou a criação do Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização e Promoção da Saúde da População Negra (GTI), instituído em 1995. Este foi um grande passo para a construção de uma agenda própria acerca da saúde da população negra. Contudo, é em 2001, na 3ª Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância (Conferência de Durban), realizada na cidade de Durban na África do Sul, que o Brasil adere a uma agenda de compromissos internacionais para a implementação de políticas de enfrentamento do racismo, da discriminação racial, xenofobia e formas correlatas de intolerância, tornando-se signatário da Declaração de Durban. Entretanto, apenas em 2006, cinco anos após a Conferência de Durban, a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra é aprovada pelo CNS.
Cabe destacar também a importância e o papel da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), criada em 21 de março de 2003, na construção e implementação das políticas de saúde voltadas à população negra. A SEPPIR tem como papel formular, coordenadar e articular políticas e diretrizes para a promoção da igualdade racial no Brasil, com ênfase na população negra e outros segmentos étnicos-raciais.
A PNSIPN visa promover a equidade em saúde, orientada pelos mais importantes princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS) – integralidade, universalidade e participação social; estabelece o racismo como fator preponderante da determinação social de saúde; e tem como marca o combate às desigualdades no SUS, considerando-se as iniquidades em saúde e a promoção da saúde integral da população negra (Brasil, 2009).
Afinal, como está a implementação da PNSIPN em território nacional?
De acordo com o perfil dos municípios brasileiros (IBGE, 2021), das 27 capitais brasileiras apenas 14 (51,85%) incluíram ações previstas na PNSIPN nos Planos Municipais de Saúde (PMS). Já 16 (59,25%) incluíram a inserção de tópicos sobre saúde da população negra e estratégias de enfrentamento do racismo nos cursos de formação do quadro de profissionais da área da saúde. Destaca-se que das 14 capitais que implementaram a política, três delas não preveem ações de formação e há outras três capitais que, apesar de não terem implementado a política, promovem formação que inclui a pauta saúde da população negra. Importante frisar, também, que nem toda capital que inseriu a política no Plano Municipal de Saúde possui uma instância específica para conduzir, coordenar e monitorar as ações de saúde voltadas para a população negra, não obstante quantitativamente se mantenha a mesma proporção de 14 capitais (51,85%).
É possível observar, ainda, que das 27 capitais brasileiras apenas 9 (33,33%) inseriram as ações da PNSIPN nos PMS, promovem formação de combate ao racismo para seus quadros de profissionais e possuem instância específica para monitorar as ações de saúde voltadas à população negra. São elas: Rio Branco, Macapá, Salvador, Manaus, Recife, João Pessoa, Cuiabá, São Paulo e Porto Alegre. Em contraposição, seis capitais (27%) não possuem implementadas nenhuma destas proposições, a saber: Boa Vista, Porto Velho, Maceió, Natal, Teresina e Brasília (IBGE, 2021).
Na avaliação da implementação da PNSIPN no PMS por região do país, verifica-se que: no Sudeste, apenas São Paulo inseriu a PNSIPN no PMS, enquanto que no Sul, Florianópolis foi a única capital em que a política não foi implementada. Já no Nordeste, cinco das nove capitais implementaram, enquanto no Norte foram quatro das sete capitais. E, por sua vez, o Centro-Oeste foram duas das quatro capitais (IBGE, 2021).
Quando analisamos os 5.570 municípios brasileiros, destaca-se que até o ano de 2021, ainda tínhamos 2.925 municípios no Brasil (52,5%) sem terem implementado a política. Estabelecendo uma análise comparativa entre os anos de 2018 e 2021, tem-se um aumento na adesão à política no ano de 2021, em comparação com 2018, sendo este total de 1.080 novos municípios, além dos 686 municípios que deram continuidade às ações voltadas para a saúde da população negra, desde 2018. Todavia, é bastante relevante sublinhar que, em 2021, um total de 850 municípios descontinuaram a implementação da política. O fato é que este retrocesso pode ter tido relação com a mudança de gestão municipal ocorrida em 2021, em função das eleições municipais de 2020 (Coelho; Nobre, 2023)
O panorama atual da implementação da PNSIPN provoca mobilizações e reflexões. Qual o financiamento destinado para a implementação da PNSIPN? Em que fase de implementação da PNSIPN encontram-se os municípios brasileiros? A Política está atingindo os objetivos propostos? Houve melhoria do preenchimento do quesito raça/cor/etnia nesses municípios? Os dados coletados, analisados produziram novos conhecimentos e fundamentaram as ações em saúde? Os dados apresentados tratam-se de implementação adequada da política ou de algumas ações isoladas? A PNSIPN foi inserida no Plano Estadual de Saúde, Planos Operativos Anuais, Termos de Compromisso e Relatório de Gestão? Houve investimento em indicadores de avaliação e monitoramento da política? Houve melhoria nos indicadores de saúde da população negra após implementação da PNSIPN?
A não implementação da PNSIPN reflete como as desigualdades sociais e iniquidades em saúde são fatores preponderantes para a existência de relações desiguais de acesso aos serviços de saúde, de fragilidades institucionais com a presença do racismo institucional e de barreiras ao controle social. O racismo institucional materializa-se na inadequação do serviço especializado, profissional ou técnico à população negra; na ausência de indicadores de saúde; na subnotificação dos dados segundo raça/cor/etnia nos sistemas de informação em saúde; na falta de capacitação continuada e formação permanente dos/as profissionais de saúde, na precarização do serviço prestado etc. (Werneck, 2016).
A PNSIPN tem como um dos seus objetivos específicos “melhorar a qualidade dos sistemas de informação do SUS no que tange à coleta, processamento e análise dos dados desagregados por raça, cor e etnia” (Brasil, 2009). Sendo assim, a subnotificação nos sistemas de informação em saúde é um dos importantes exemplos de como a mesma não tem sido implementada adequadamente. O volume 1 do Boletim Epidemiológico de Saúde da População Negra (2023) publicado pela Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente (SVSA) do Ministério da Saúde (MS), por exemplo, apresenta que no ano de 2021, o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) teve cerca de 2,3% (42.349) de subnotificação no quesito raça/cor/etnia, no que tange aos registros de óbitos, constando a informação como ignorado ou não informada.
Por sua vez, o Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (SINASC) apresentou 2,4% (65.180) de nascidos vivos que tiveram a variável raça/cor ignorada. Nesse contexto, ressalta-se, ainda, a importância da produção e análise de dados desagregados entre pretos e pardos em virtude de apresentarem especificidades nos perfis epidemiológicos. Por exemplo, em 2020, as cinco principais causas de óbito, segundo a variável raça/cor, considerando a população preta foram: coronavírus, doenças cerebrovasculares, causas mal definidas, doenças isquêmicas do coração e diabetes mellitus. Quando considerada a população parda, as agressões substituíram o diabetes mellitus (MS, v.1, 2023).
Ademais, vem à tona a invisibilidade de ações específicas destinadas à redução do impacto de doenças prevalentes como o diabetes mellitus (tipo II), hipertensão arterial, deficiência de glicose-6-fosfato desidrogenas e doenças falciformes. Também não se tem observado redução das disparidades étnico-raciais nas condições de saúde e nos agravos, considerando as necessidades locorregionais, sobretudo, na morbimortalidade materna e infantil, bem como das doenças de vigilância compulsória como HIV/aids, sífilis, dengue, hanseníase, tuberculose (TB) e leishmaniose tegumentar (Brasil, 2007). Não é à toa, por exemplo, que, entre 2010 e 2022, foram notificados 73 mil novos casos de TB ao ano, dos quais, aproximadamente, 60% estavam concentrados na população negra (pretos e pardos), de acordo com o volume 2 do Boletim Epidemiológico de Saúde da População Negra (2023).
Esses dados evidenciam que o racismo e o processo de determinação social, a falta de atenção e cuidado integral, a rigor, não são considerados no diagnóstico, tratamento e prognóstico – como fatores de agravamento das condições de saúde da população negra.
É por isso que a gestão da PNSIPN deve ser compartilhada entre os três entes federativos: União, estados e municípios, e sua implementação exige o reconhecimento dos impactos do racismo na saúde da população negra, financiamento adequado, ações contínuas e bem coordenadas e articuladas com outros setores. A implementação adequada da PNSIPN e a criação de Comitês técnicos de monitoramento em todo o território nacional correspondem, portanto, a uma questão técnica, administrativa, mas sobretudo, cultural e política.
Atualmente, no governo Lula, tem-se observado esforços do Ministério da Saúde com vistas à promoção da equidade e democratização da saúde. Uma das ações estratégicas que denotam o compromisso governamental refere-se à criação da Assessoria de Equidade Racial em Saúde no Ministério da Saúde, que tem desenvolvido junto aos movimentos sociais, sociedade civil, Universidades, serviços de saúde, profissionais do setor e gestões municipais e estaduais um conjunto de ações estruturantes de indução e fortalecimento da PNSIPN, enfrentamento do racismo e redução das desigualdades em saúde, a exemplo da organização do Observatório de Saúde da População Negra e da constituição do Comitê Técnico Interministerial em Saúde da População Negra (envolvendo o próprio Ministério da Saúde, o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania e o Ministério da Igualdade Racial).
Seria esse um tempo favorável ao avanço da política e de significativas melhorias da situação de saúde da população negra? O movimento contra-hegemônico e antirracista da década 1980 persiste em busca da equidade na atenção e nos resultados em saúde.
* Diana Anunciação é professora do Centro de Ciências da Saúde e atual coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Saúde da População Negra e Indígena da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Coordenadora do GT Racismo e Saúde e Vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva.
** Ionara Magalhães de Souza é professora do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, membra do GT Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva e do Comitê Técnico Estadual de Saúde da `População Negra da Bahia.