Na manhã da última terça-feira (9), cerca de 530 famílias de agricultores da cidade de Santa Maria da Boa Vista, no Sertão pernambucano, foram pegas de surpresa com a chegada de um grande aparato policial em seu acampamento. Viaturas policiais e até helicóptero foram mobilizados para executar a ordem de reintegração de posse em favor de um empresário. As terras, segundo as famílias ocupantes, estavam abandonadas havia 20 anos.
As famílias se queixam que foram tratadas com truculência e sequer puderam retirar os seus pertences. “Tivemos um despejo violento aqui no Acampamento Nova Boa Vista. Nossas famílias não tiveram direito nem de tirar um celular que estava dentro do barraco. A polícia não permitiu. Passaram com a máquina e demoliram todo o acampamento”, se queixou Silvano Leite, dirigente do Movimento dos Sem Terra (MST), bandeira que organizou as famílias ocupantes.
Durante as seis horas de tensão no acampamento, os agricultores pediam, sem sucesso, que a polícia aguardasse a retirada dos seus bens. Houve bate-boca e dois sem terras foram detidos, Adailton Cardoso e Edvan Santos, acusados de desacato policial. Ambos foram liberados em seguida. “Assistimos a uma injustiça do latifúndio e do Poder Judiciário em Pernambuco”, avalia Silvano Leite.
As terras em questão são da Fazenda Umbuzeiro I, com 117,5 hectares, no quilômetro 93 da BR-428, em Santa Maria da Boa Vista. No local, funcionou no início dos anos 2000 a agroindústria “Farmfruit Agroindustrial S. A.”, que fez benfeitorias no local, como um sistema de irrigação e uma agroindústria. Mas tudo está abandonado há cerca de duas décadas. A propriedade fica muito próxima ao Rio São Francisco e, portanto, são terras de grande potencial produtivo no semiárido.
Sob a bandeira do MST, as famílias ocuparam as terras em abril deste ano, na jornada de lutas do “Abril Vermelho”. Durante os seis meses, mais famílias da região foram chegando e hoje somam mais de 500 grupos familiares no local, segundo o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra.
Em entrevista ao Brasil de Fato Pernambuco, o advogado Carlos Madeira, que atua junto ao MST, destaca que aquela propriedade privada – que está abandonada e, portanto, não cumpre sua função social, como manda o artigo 5º da Constituição Federal – também tem dívidas públicas. “A dívida deles com o Banco [público] do Nordeste (BNB) supera o valor da propriedade. Então esperávamos que aquela terra fosse transferida ao Estado e destinada à agricultura familiar”, explica ele. “Há anos aquelas famílias desejavam poder produzir naquelas terras”, completa.
O MST, em nota publicada nas redes sociais, responsabiliza o Banco do Nordeste por suposta omissão no caso. “O BNB reconhece que os proprietários são grandes devedores, com dívidas muito superiores ao valor das terras e de uma indústria sucateada e nunca utilizada. Apesar disso, o banco não executou as dívidas e nem repassou as terras para a reforma agrária, o que poderia ter evitado a violência contra os trabalhadores”, criticou o movimento.
No entanto, segundo o Ministério Público de Pernambuco (MPPE) e o BNB, a dívida teria sido convertida em debêntures, que são títulos de dívida pública com juros fixados (títulos de renda fixa), de modo que não haveria dívida em fase de execução contra o proprietário. Além disso, segundo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o tamanho da propriedade não permite que seja enquadrada como “de grande porte”, não podendo ser desapropriada para fins de reforma agrária.
Mas, segundo o advogado Carlos Madeira, como a fazenda não está cumprindo sua função social, visto que está abandonada há décadas, ela pode sim ser desapropriada para fins sociais, como previsto no artigo 184 da Constituição Federal. “A reforma agrária é apenas um dos interesses sociais que podem motivar a desapropriação. Então a desapropriação ainda poderia acontecer, visando garantir outros interesses sociais, se houvesse interesse por parte do Governo de Pernambuco e do Governo Federal”, pontuou Madeira.
Além da finalidade de reforma agrária, segundo a Lei Federal nº 4.132 de 1962, uma desapropriação de bem privado pode ter por finalidade promover o bem-estar social, o aproveitamento de bens improdutivos, promover a produção agrícola, construir moradias populares, proteção de recursos naturais, construção de obras públicas ou mesmo o uso turístico. A desapropriação é feita por ato do Poder Executivo (presidente da República, governador do estado ou prefeito), com pagamento de indenização ao antigo proprietário.
O MST reivindica que aquelas terras agricultáveis sejam destinadas a trabalhadores rurais, muitos em condição de vulnerabilidade. “Numa região semiárida, você tem propriedades de terra com grande capacidade de produção de alimentos, mas ela está abandonada. E do outro lado, temos centenas de famílias agricultoras que desejam conquistar sua dignidade por meio do trabalho na terra”, compara o advogado. “O Estado precisa apresentar uma alternativa”, completa o advogado do Movimento Sem Terra.
Madeira também lamentou a falta de atuação do Governo de Pernambuco em defesa das famílias. “O poder público sequer cadastrou as famílias em programas sociais, para terem acesso a políticas públicas. Então o problema social persiste e o Estado só trata como problema de polícia”, pontuou. “Para onde essas famílias irão agora? Como vão garantir suas necessidades básicas, de moradia, alimentação e renda? Esses despossuídos acabam migrando de um lugar para outro”, avaliou.
O Brasil de Fato buscou o posicionamento do Governo de Pernambuco sobre o assunto, sem retorno. O espaço segue aberto para atualizações.
Edição: Vinícius Sobreira