A lei do aborto legal, seguro e gratuito na Argentina está sob ameaça no governo de extrema direita de Javier Milei. Além de tentativas de cancelar a lei no Legislativo, o governo a sabota e tenta desmontá-la ao não repor estoques de medicamentos e outros insumos necessários para garantir o acesso a quem precisa, segundo profissionais e ativistas argentinas que trabalham com o tema ouvidas pelo Brasil de Fato.
“O mais grave é a falta de insumos”, diz Silvina Ramos, socióloga e pesquisadora titular do Projeto Mirar, um observatório do Centro de Estudos de Estado e Sociedade (Cedes) da Argentina, que visa monitorar a implementação da Lei do Aborto Legal. “E se não temos insumos, não temos política [pública]. Sem insumos para o aborto, não temos como fazer os abortos.”
A Lei pela Interrupção Voluntária da Gravidez (lei IVE/ILE), aprovada há quase quatro anos pelo Senado argentino, entrou em vigor efetivamente em janeiro de 2021 e dá um significado concreto para o Dia da Luta pela Descriminalização do Aborto na América Latina e Caribe, celebrado neste sábado (28).
O projeto, apresentado no governo do ex-presidente peronista Alberto Fernández, foi uma conquista de anos de luta popular. “Quando falamos de saúde integral, estamos falando de uma mudança promovida ao redor dos debates sobre a lei do aborto e do asseguramento de aspectos psicológicos, econômicos e sociais que envolvem a saúde completa”, afirma Carlota Ramirez, diretora provincial de Equidade de Gênero na Saúde na província de Buenos Aires.
Ao Brasil de Fato, a funcionária que foi diretora de Saúde Sexual e Reprodutiva da província de Buenos Aires, também denuncia que o governo pouco faz para estimular e proteger o direito ao aborto para as mulheres argentinas e vai além: “Quanto a métodos contraceptivos, o governo nacional envia muito poucos, e a província compra o necessário para abastecer os serviços”.
De acordo com dados oficiais, não há nenhum motivo aparente para derrubar ou enfraquecer a aplicação de lei já que ela vinha dando resultados. Somente em 2023, a lei do aborto legal na Argentina forneceu 166.164 tratamentos seguros, adequados e gratuitos; em 2020, último ano antes da aprovação da lei, foram apenas 18.590.
Julia Martino, ativista da Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito, e integrante do movimento Incidencia Feminista, denuncia que o governo Milei apenas reparte o estoque já existente dos medicamentos misoprostol (provocador do esvaziamento uterino) e mifepristona (inibidor do hormônio progesterona), essenciais para os procedimentos.
“Por causa disso, todas as províncias estão com falta de insumos para garantir as interrupções da gravidez. Algumas delas, que têm recursos e vontade política, compram insumos e seguem garantindo as interrupções, mas as demais províncias não. Tudo depende do compromisso e da vontade dos profissionais e equipe dos serviços de saúde”, disse ao Brasil de Fato.
Além disso, a lei possibilitou criar o Plano Nacional de Prevenção da Gravidez Não Intencional na Adolescência (Enia), programa aplicado nas províncias as taxas mais altas de gravidez na adolescência. O Enia foi um dos responsáveis pela redução de 50% da gravidez em adolescentes, e garantia assistência, orientações sobre saúde sexual e abusos e distribuição de anticoncepcionais para jovens e adolescentes. Este plano foi cortado por Javier Milei em abril de 2024.
Ataques no legislativo
Apenas dois meses após a chegada ao Poder Executivo, o partido do ultraliberal enviou para a Câmara dos Deputados, em fevereiro de 2024, um projeto de lei (PL) que pedia a revogação do direito ao aborto promulgada no final de 2020. O PL da deputada do partido reacionário La Libertad Avanza, Rocío Bonacci, pretendia retroceder a legislação para antes do ultrapassado Código Penal de 1921, ao eliminar também o direito de aborto em caso de violência ou risco para a saúde da gestante.
A proposta previa pena de um a três anos de prisão para mulheres que abortassem, e pena de um a quatro anos para quem realizasse o aborto. Se houvesse morte da gestante, a pena seria de até seis anos. Profissionais de saúde que auxiliassem no procedimento, após a pena, não poderiam exercer a função profissional pelo dobro do tempo da pena. Milei apoiou diretamente o projeto em uma publicação no X em março deste ano.
O PL foi derrotado e o porta-voz presidencial passou a dizer que a derrubada da lei não estaria mais na agenda oficial do presidente, e que o foco do seu governo será, por enquanto, buscar o controle da inflação e superávit econômico.
A socióloga Silvina Ramos diz não acreditar que o governo Milei tenha força no Congresso para derrubar a lei, por ela ter “muita legitimidade, foi muito debatida na Argentina, e a sociedade acompanhou fortemente”. “O governo Milei não tem sustentação política para tentar uma derrubada da lei”, diz.
Como funciona a lei do aborto legal
A legislação possibilita realizar um aborto seguro e gratuito até a 14ª semana de gestação pelo próprio sistema de saúde da Argentina, que garante o acompanhamentos psicológicos e sociais pré e pós-aborto. A lei também prevê o fornecimento de medicamentos contraceptivos para toda e qualquer pessoa que possa gestar.
A lei, que faz parte do escopo da saúde pública, prevê um tratamento digno em qualquer centro de saúde do Estado, e deve fornecer todas as informações necessárias, além de respeitar todas as crenças, sem discriminação e com total confidencialidade.
Qualquer pessoa a partir de 16 anos não precisa de assistência ou autorização para realizar o aborto. Entre 13 e 15 anos, a assistência ou autorização será obrigatória apenas se o procedimento não for invasivo e com risco para a saúde, como, por exemplo, o uso do medicamento misoprostol. Agora, até os 13 anos, será necessário a assistência e acompanhamento de um maior de idade, que tenha uma relação socioafetiva com a criança que realizará o procedimento.
O método mais seguro, e de disponibilidade obrigatória em todos os centros de saúde durante o primeiro trimestre de gestação, é o uso do misoprostol, com distribuição e instrução de uso gratuitas, segundo a lei. Este medicamento também pode ser tomado com a mifepristona; os dois fármacos combinados aumentam a efetividade e segurança do procedimento legal. O método alternativo ao medicamentoso é a Aspiração Manual Endo Uterina (Ameu), realizado apenas nos centros de saúde e hospitais, por ser uma intervenção cirúrgica que requer anestesia.
“Os resultados [da implementação] se mostraram muito positivos. Foram duplicados os serviços que fornecem o procedimento em todo o país [de 907 para 1.982], aumentaram as quantidades de tratamentos com misoprostol e a aprovação de comercialização da mifepristona. Tudo para oferecer serviços apropriados e de qualidade”, ressalta Silvina Ramos.
A pesquisadora também ressaltou a importância dos laboratórios públicos de produção do misoprostol que existiam no país, e eram responsáveis por suprir a maior fatia do medicamento para as 24 províncias.
Maré verde
A chamada “maré verde”, marchas por direitos reprodutivos e sexuais das mulheres, tomaram as ruas do país em 2018. Este chamado que reuniu milhares de pessoas pelo país, deu nome e inspirou outros movimentos de países latino-americanos por direito de escolha sobre o próprio corpo.
A “maré verde” refere-se aos lenços verdes usados na Argentina durante os protestos, e simboliza mulheres que lutam por equidade de gênero e direito de escolha que vivem em um continente onde três a cada quatro abortos são considerados inseguros, segundo pesquisa da Organização Mundial da Saúde (OMS).
A atividta Julia Martino lembra que a sanção da lei do aborto legal foi produto de um longo processo de luta coletiva das argentinas.
“As mulheres deste país estão organizadas há muito tempo, e fomos, aos poucos, conquistando direitos. Em 20 anos de atividade, a Campanha foi uma articulação fundamental para o sucesso da lei IVE, através de diversas estratégias: a apresentação do projeto de lei, o diálogo com outros movimentos como o dos direitos humanos, do sindicalismo, das juventudes e das mulheres políticas. Foi uma estratégia de comunicação e mobilização.”
Edição: Rodrigo Durão Coelho