O Brasil celebra, neste sábado (5), 36 anos de promulgação da Constituição de 1988. Após 3 décadas de ditadura militar, o conjunto de normas consolidou a redemocratização do país e, até os dias de hoje, simboliza um dos momentos de maior participação popular da história brasileira.
Em 2018, quando o texto completou 30 anos, o deputado constituinte José Genoino (PT) concedeu uma entrevista ao Brasil de Fato em que alertou para o desequilíbrio entre os poderes, o enfraquecimento da soberania popular e o ambiente de negação da política que se desenhava.
De lá para cá, o país vivenciou os anos do governo de extrema direita de Jair Bolsonaro (PL), o desmonte de políticas sociais e das garantias de direitos, os impactos da pandemia e a tentativa de golpe contra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em 8 de janeiro de 2023.
Nesta semana Genoino voltou a falar com o BdF sobre o tema. Na conversa ele apontou que a Constituição superou alguns desafios consideráveis, mas tem seu espírito original de foco na justiça social e nos direitos fundamentais constantemente adulterados.
“A Constituição aguentou em partes, mas ela foi muito violentada. São 129 emendas constitucionais e eu destacaria as emendas que garantiram a hegemonia neoliberal do governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) – o papel do Estado, o conceito de empresa nacional e a questão das privatizações. Depois nós tivemos o processo de lei de responsabilidade fiscal que gerou o que eu chamo de tirania fiscal.”
Nas palavras de Genoino, essas decisões colocam garantias fundamentais do texto constitucional sob “tutela”, especialmente no que diz respeito aos direitos de trabalhadoras e trabalhadores e políticas públicas de saúde, educação, meio ambiente e outros avanços do texto.
Segundo o deputado constituinte, a hegemonia neoliberal, o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff em 2016 e o governo de extrema direita de Jair Bolsonaro (PL) causaram impactos consideráveis às garantias constitucionais. “Por exemplo, a terceirização contraria o artigo 7 da Constituição. O ajuste fiscal refreia os investimentos em saúde, educação e assistência social.”
Para José Genoino, a negação da política impulsiona esse cenário e enfraquece a democracia. “A Constituição foi a suprema valorização da política. O que veio depois do início do século 21 foi a negação da política. É a negação que está produzindo o discurso de que a política não presta, portanto vamos votar numa espécie de anarquismo a favor da ordem capitalista.”
Leia a entrevista a seguir ou ouça no tocador de áudio abaixo do título desta matéria
Brasil de Fato: Em 2018, o senhor deu uma entrevista ao Brasil de Fato em que já alertava para os desafios que a Constituição e a democracia no Brasil enfrentavam. Desde então, o país passou por momentos históricos críticos, como a pandemia, um governo conservador e com comportamento contrário aos processos democráticos e uma tentativa de golpe. É possível dizer que o texto aguentou os desafios?
José Genoino: Aguentou em partes, mas ela foi violentada. São 129 emendas constitucionais e eu destacaria, dessas 129, as emendas que garantiram a hegemonia neoliberal do governo de Fernando Henrique Cardoso, o papel do Estado, o conceito de empresa nacional e a questão das privatizações. Depois nós tivemos o processo de lei de responsabilidade fiscal, que gerou o que eu chamo de tirania fiscal. Essa lei de responsabilidade fiscal acabou estabelecendo uma tutela, particularmente sobre o artigo 7 da Constituição, depois sobre as políticas públicas de saúde, previdência, educação e meio ambiente e as conquistas que foram produzidas na Constituição
O principal fato que quase matou a Constituição foi o golpe de 2016. Nós tivemos um cavalo de pau na institucionalidade de 1988. Ele criou uma situação que eu chamo de congestão institucional. É o que nós temos até hoje na relação dos três Poderes, no papel do Ministério Público, na governabilidade. Ora é o Congresso que governa, ora é o Judiciário. Nós temos que fazer uma grande mudança do ponto de vista institucional, porque a institucionalidade de 1988 foi adulterada, no meu modo de entender.
Eu coloco essa questão no livro Constituinte: avanços, recuos e crises para analisar o processo que nós estamos vivendo. A Constituição de 1988 foi produto de um pacto – não tanto selado, mas havia uma correlação de forças diferentes. Não havia ainda o Consenso de Washington, a queda do Muro de Berlim veio em seguida, depois veio o processo de privatizações em larga escala, os processos que culminaram nas diversas investigações (políticas).
Tenho uma visão crítica do que aconteceu. Não fizemos uma reforma para atualizar a Constituição. A reforma que aconteceu foi para adulterar a Constituição de 1988, que era uma obra aberta. É bom deixar claro que a Constituição não é obra de oráculos e deuses. Ela é produto da luta de classes, dos conflitos, das reivindicações, dos choques de interesse, e ela foi bem isso naquele momento crucial da transição.
O processo da constituinte representou uma ascensão da participação popular. A revisão que o senhor considera necessária também teria que ser um processo popular?
Tem que ser. Foram 122 emendas populares, 12 milhões de assinaturas e 71 mil sugestões para incluir na Constituição. Naquela época havia mais facilidade da participação popular, que só exigia 30 mil assinaturas. Neste processo, foram 65 mil emendas apresentadas por deputados e 122 mil emendas da sociedade. E vários projetos de Constituição.
A Constituição foi uma medição da correlação de forças. Havia uma situação em aberto, não havia uma hegemonia definida. Havia o centro, particularmente liderado por Mário Covas, que não é esse centrão de hoje, havia o PT, PCdoB e parte do PMDB; havia a direita liberal, que era minoria naquele momento. A hegemonia neoliberal veio depois, com a crise do governo Collor e com a ascensão de Fernando Henrique Cardoso.
Eu acho que a Constituição foi um limite para democracia liberal. Mas a participação popular não foi garantida. As questões da reforma agrária e da tutela militar foram impasses. A questão dos meios de comunicação foi uma guerra, a tortura como crime inafiançável também não avançou. Tanto que o PT lançou uma nota na época dizendo que assinava, mas votou contra o texto globalmente.
Quando ela foi promulgada, já foi questionada. Diziam, “o Brasil não cabe na Constituição” ou “ela vai provocar a ingovernabilidade”. É bom deixar bem claro que o país vinha de três frustrações nacionais: a morte de Tancredo Neves e a posse de José Sarney, o fracasso do Plano Cruzado do governo Sarney, e a derrota da emenda das Diretas. Nós não tivemos uma transição com a eleição direta. Essas três frustrações abriram um processo extremamente delicado no Brasil.
O que aconteceu nesse período conturbado é que essa Constituição foi produto de um pacto com as ruas, não foi um pacto só com as instituições, apesar do que acontecia naquela época. Havia uma ascensão do movimento popular, a reconstrução da UNE, as greves do ABC, movimento contra a carestia, a luta pela reforma agrária. Foi nesta época que se iniciou a plataforma da luta das mulheres, da luta contra o racismo, da luta em defesa do meio ambiente, da luta dos povos originários.
Veja bem, a luta dos povos originários produziu o que ficou conhecido como uma grande conquista. E agora eles querem retrocesso com a história do marco temporal. Então, temas novos apareceram na Constituição. Veio o Sistema Único de Saúde (SUS), o Sistema Único de Assistência Social (Suas), nós tivemos a Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Pela primeira vez havia um capítulo sobre meio ambiente na Constituição e se avançou nas definições sobre o conceito de família e união estável.
A Constituição de 1988 abriu uma grande janela. No meu modo de entender, essa janela foi parcialmente fechada com a hegemonia neoliberal de FHC, com as reformas na ordem econômica. Outra janela foi fechada com o golpe de 2016 e o governo de Bolsonaro, que destruiu aspectos importantes da Constituição. Por exemplo, a terceirização contraria o artigo 7 da Constituição. O ajuste fiscal contém os investimentos em saúde, educação e assistência social. Estamos vivendo ainda um certo impasse nesse processo.
Esse impasse se agravou com a negação da política. A Constituição foi a suprema valorização da política. O que veio depois do início do século 21 foi a negação da política. A chamada revolução colorida, o 2013, Lava Jato, mensalão, o protagonismo do Judiciário. É a negação que está produzindo o discurso de que a política não presta, portanto vamos votar numa espécie de anarquismo a favor da ordem capitalista.
De que forma as revisões poderiam acontecer e em que temas é preciso avançar para tornar o texto mais resiliente?
De 1988 para cá o texto constitucional sofreu algumas violências. O teto de gastos, a prisão em segunda instância – porque a Constituição diz que é necessária sentença transitada em julgado – são violências. O papel do Supremo na questão da Lava Jato e do mensalão feriu o texto constitucional. O próprio golpe foi um ataque à democracia. Quando você dá um cavalo de pau na democracia ou volta às origens da soberania popular ou não tem jeito. Agora, a governabilidade do país e a relação entre os poderes estão em questão.
Temos que colocar essa questão como uma perspectiva para que possamos avançar em uma relação democrática, criando instrumentos de participação popular de maneira autônoma. Eu vou te dar um exemplo: a primeira emenda de participação popular após a constituinte foi a do fundo por moradia popular, que precisou de um milhão de assinaturas logo após a promulgação, em 1988. Veja bem, a participação popular tem que ser simplificada. Um milhão de assinaturas é demais. Discutir sobre o eleitorado também deve ser algo mais simplificado. O sistema de plebiscito e referendo precisa ser acessível, porque se a sociedade não participa, ela não se sente pertencente ao texto constitucional.
Agora, diante dessa correlação de forças que vamos lutar para alterar, não faz sentido fazer esse tipo de mudança agora. Acredito que é um processo para o futuro, que deve ser considerado, porque nossa institucionalidade é oligárquica, racista e autoritária. Por exemplo, nosso sistema eleitoral não é democrático, pois quando você vota para presidente, o eleitor tem um voto no Brasil inteiro, mas para deputado não é assim.
Temos uma norma que vem da ditadura, o pacote de abril do Geisel, que determina que nenhum estado pode ter menos de oito representantes e nenhum pode ter mais de setenta. A eleição no Brasil é uninominal. Não é uma eleição por projeto, por programa. Em certos momentos, temos um protagonismo do Poder Judiciário. Qual é a legitimidade do Poder? A legitimidade do poder está no artigo principal: o poder emana do povo, pela forma direta ou indireta. O Judiciário não é um Poder propriamente dito; é uma parte do Estado.
A questão da tutela militar, que está no artigo 140, foi um debate crucial na constituinte. Tivemos grandes impasses, como a cláusula de propriedade, que impactou a reforma agrária. Perdemos até a ideia de colocar o Estatuto da Terra na Constituição. A questão dos meios de comunicação, que agora são controlados por grandes empresas, precisa ser regulamentada democraticamente. A informação é um direito da cidadania. Não pode ser tratada como um meio econômico que explora a informação.
A memória de 64 foi congelada. Isso precisa ser mais bem avaliado. Eu digo que nosso programa estratégico pressupõe mudanças na Constituição de 1988, porque ela sofreu transformações. A questão do Banco Central independente é uma delas. Você elege o presidente da República – não estou discutindo quem está no cargo – mas quando se trata da administração da moeda, o Banco Central é independente e tem um mandato eleito pelo Senado.
Esses são problemas graves da representação na democracia participativa. A democracia, para ser renovada e fortalecida, precisa combinar a representação com a democracia direta. Se ficarmos apenas com a representação a cada dois anos, ela se torna precária.
Voltando a 1988, quais foram os debates que mais te marcaram naquele momento?
Primeiro, tudo era permitido, nada era proibido e tudo era discutido. Segundo, o debate decidia a votação. Quem falasse bem, quem fundamentasse, ganhava o voto no plenário. Eu participei de alguns debates muito importantes, particularmente no tema do artigo 5º, dos direitos e garantias. Era a primeira vez que se organizava sistematicamente um conjunto de direitos e garantias como princípios fundamentais da Constituição.
Os debates que me marcaram profundamente foram, mesmo perdendo, o direito das mulheres, a questão da união estável, o preconceito contra o povo negro e a criminalização da tortura como crime inafiançável, que nós perdemos. Eu participei intensamente da discussão e do debate sobre o artigo 142, que ficou famoso com as tentativas de golpe de 8 de janeiro de 2023.
O ambiente da constituinte era um ambiente saudável, não era esse ambiente tóxico de hoje. Era um espaço em que se discutia direita, esquerda e centro. Era um ambiente de diálogo, não de guerra. Hoje, temos uma guerra. Antes, era disputa e luta. A própria Constituição não estabeleceu uma submissão à mídia, pois tinha um espaço próprio de comunicação com a sociedade, que eram 5 minutos no início do horário das 20 h na televisão, com todos os veículos.
Eram debates que se faziam de maneira muito intensa. Por exemplo, eu disputava muito com Amaral Netto a questão da pena de morte. Ele era a favor, eu contra. Em um dos debates, o assunto se prolongou, porque era interminável, e eu perguntei a ele quem iria executar? Seria um cargo de confiança ou concursado? Um justiceiro? Os debates eram acirrados, abrangendo direitos individuais, questões econômicas e o sistema de governo.
Partimos da ideia de que nada estava posto e tudo podia ser discutido. A Constituição nasceu de 24 comissões e 8 comissões, depois uma outra grande comissão que sistematizava tudo. Esse processo foi muito democrático. No meu modo de entender, o procedimento democrático foi maior do que o resultado produzido. Por isso, na proclamação de Ulysses Guimarães, ele diz que a Constituição foi um parto. Esse parto estava em aberto e era preciso garantir a governabilidade. Quem ele manda garantir a governabilidade? O Poder Executivo e o Legislativo. Ele tinha uma noção exata de que o poder emana do povo e nós temos que ter essa noção exata.
Os principais referenciais aos quais ainda me apego na Constituição são os artigos primeiro, segundo, terceiro e quarto, que são os princípios fundamentais. A partir do quinto, começou a adulteração, a sangria do que foi a grande conquista de 1988. A revisão constitucional não se realizou cinco anos depois e a classe dominante brasileira, logo após a promulgação, assumiu o discurso de que a Constituição de 1988 não garante a governabilidade. Governabilidade significa o quê? Ajuste fiscal, privatização, teto de gastos, rentismo.
Portanto, minha relação com a Constituição de 88 foi intensa. É uma relação aberta, democrática, em algumas coisas órfã, porque é obra dos seres humanos. Não é obra de sábios, de deuses, nem de oráculos; é fruto de lutas e confrontos. E eu vivi isso de maneira muito intensa.
Edição: Thalita Pires