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Literatura busca mundo melhor diante das desarmonias, diz patrono da Feira do Livro de Porto Alegre

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“O tempo passa e também os ramos se afundam, se perdem. Entre mar e céu se esconde a fímbria e até os passarinhos vão embora, eu os acompanho com o olhar, eles voando, voando, se sumindo. Adeus, adeus, até a vista, e volto a ficar sozinho com este mar imenso, este mar intenso que me cerca e me estrangula, uma corda de sal em meu pescoço. Como pode uma chalana frequentar o mar? O tempo vai passando, o tempo vai zunindo, eu o sinto dentro de mim como um inseto”.

Trecho do conto “Adeus aos Passarinhos”, de Sérgio Faraco.

Patrono da 70ª edição da Feira do livro de Porto Alegre, o escritor Sérgio Faraco pontua que a literatura, como a arte em geral, busca um mundo melhor diante das desarmonias daquilo que costumamos chamar de vida real, que nada mais é senão a ilogicidade de uma sucessão de acasos. “Talvez a literatura e todas as artes possam contribuir para que as pessoas sejam mais compreensivas, mais tolerantes, mais generosas, mais solidárias, porque só com tais sentimentos teremos condições de sobreviver ao princípio da incerteza que desgoverna o mundo. A enchente faz parte deste princípio. A pandemia também.”

Nascido em Alegrete, em 1940, Faraco viveu por dois anos na União Soviética, entre 1963 e 1965, quando cursou o Instituto Internacional de Ciências Sociais, em Moscou. Ao longo da sua trajetória literária, tem inúmeros prêmios e reconhecimentos pelos seus contos, memórias, crônicas e obras de ficção. Em 1988, com a obra A Dama do Bar Nevada, conquistou o Prêmio Galeão Coutinho, reconhecido pela União Brasileira de Escritores como o melhor volume de contos lançado no Brasil no ano anterior. Alguns anos depois, em 1994, com A lua com sede, recebeu o Prêmio Henrique Bertaso de melhor livro de crônicas. Nos anos de 1995, 1996 e 2001, foi agraciado com o Prêmio Açorianos de Literatura, principal premiação cultural da capital gaúcha. Em 2008 recebeu a Medalha Cidade de Porto Alegre, como homenagem da prefeitura da capital. O escritor também é formado em Direito.

O patrono participará de quatro atividades especiais ao longo do evento – que começa nesta sexta, 1º de novembro, na Praça da Alfândega, no Centro Histórico. No sábado (2), uma oficina ministrada pela professora e crítica literária gaúcha Léa Masina celebra a obra e a representatividade de Faraco. Já no domingo (3), o homenageado convida Masina e Sergius Gonzaga, escritor e professor de literatura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), para um bate-papo sobre sua carreira e produção literária, oferecendo ao público uma visão íntima e particular do seu processo criativo.

No dia 14, haverá uma mesa com a professora e pesquisadora Andrea Kahmann e com o tradutor Sérgio Karam. A conversa pretende abordar a atuação do patrono como escritor-tradutor e iniciador de diversos projetos de tradução e antologização, destacando seu papel para a renovação do sistema literário gaúcho e brasileiro por meio da importação de modelos, temas e ideias.

Já o documentário Mario Arregui & Sergio Faraco – amizade sem fronteiras, dirigido por Rafael Valles e com locuções de Nelson Diniz e Roberto Carnaghi, será exibido no dia 19 de novembro, no Auditório Barbosa Lessa – Espaço Força e Luz, às 17h30. O filme trata do processo de tradução dos contos do escritor uruguaio Mario Arregui — realizado por Faraco —, além de falar sobre a profunda amizade entre eles, ao longo das cartas que trocaram nos anos 1980. Após a projeção, será realizado um bate-papo com Faraco e com Valles.

Brasil de Fato RS: A feira do livro completa seus 70 anos de existência. Como tu vê essa caminhada, e como é ser o patrono ao se celebrar as sete décadas? 

Sérgio Faraco: Como eu já havia recusado muitas vezes antes, por discordar do sistema da escolha, hesitei por alguns momentos. Mas há dois ou três anos a Câmara retomou o critério tradicional, que no meu entendimento nunca deveria ter sido abandonado. Então, já não era o caso de continuar recusando. Me senti muito honrado, não é pouca coisa ser patrono da nossa gloriosa Feira do Livro. É uma homenagem importante que recebo da Câmara Rio-Grandense do Livro e que para sempre vou lembrar.

O estado passou no último ano por desastres climáticos, com o registro da maior enchente já registrada. Neste contexto, qual o papel da literatura, qual simbolismo ela traz? 

Sim, teremos a Feira do Livro da reconstrução, que deve atenuar as perdas que tiveram nossos editores, livreiros e distribuidores com aquela tragédia. O patrono está incluído nesse esforço de restaurar a estabilidade do comércio do livro.

Como a literatura se insere nessa reconstrução do estado? 

Penso o papel dela de outro modo. A literatura, como a arte em geral, busca um mundo melhor diante das desarmonias daquilo que costumamos chamar de vida real, que nada mais é senão a ilogicidade de uma sucessão de acasos. Talvez a literatura e todas as artes possam contribuir para que as pessoas sejam mais compreensivas, mais tolerantes, mais generosas, mais solidárias, porque só com tais sentimentos teremos condições de sobreviver ao princípio da incerteza que desgoverna o mundo. A enchente faz parte deste princípio. A pandemia também.

De acordo com o levantamento: Retrato do consumo de livros no Brasil em 2023 apresentado pela Câmara Brasileira do Livro (CBL), apenas 16% das pessoas acima de 18 anos compraram livros nos últimos 12 meses. Já em relação a leitura, segundo a 5ª edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil (2019), existem cerca de 100 milhões de leitores, que compõem 52% da população. O que devemos fazer para mudar essa realidade?

Se, de fato, em 2019 tínhamos 100 milhões de leitores, talvez não seja preciso fazer muita coisa. Contudo, devo supor que o resultado dessa pesquisa é excessivamente otimista. Números mais críveis exigiriam a manutenção das feiras, maior estímulo à leitura nas escolas, barateamento do preço do papel, dos serviços gráficos, do livro, melhor saúde, mais empregos, mais salário, fortalecimento das escolas e universidades públicas etc., requisitos de difícil consecução num país onde se rouba em todos os extratos, até a merenda escolar.

Gostaria de deixar uma mensagem final?

Deixo registrado o convite para que os porto-alegrenses e os visitantes de outras cidades do Sul compareçam à nossa feira, de 1º a 20 de novembro, e não se deixem enganar por teorias de que o progresso tecnológico há de determinar a extinção do livro impresso. É uma lenda fabricada para promover o comércio digital, que por certo é um veículo estupendo, mas é também um veículo circunstancial que morre a cada nova etapa de seu desenvolvimento. O livro não morre.

“Vendo-a assim, desenvolta, eu sentia que algo vicejava forte em mim, uma nova energia, uma vontade de viver, de conviver, compartilhar, e tinha certeza, uma certeza doce, cálida e total, de que agora ela pensava como eu, que valia a pena tentar ainda uma vez, que valia a pena dançar um tango em Porto Alegre. Que importava se era ou não era amor? Sempre, mas sempre mesmo, seria uma vitória.”

Trecho do conto “Dançar tango em Porto Alegre”, de autoria de Sérgio Faraco, do livro A dama do Bar Nevada, edição da L&PM.

Fonte: BdF Rio Grande do Sul